segunda-feira, 26 de julho de 2010

OPINIÃO - Artigo

Anos 80 de novo
                               
Luís Antônio Giron

Detesto a passagem das décadas, até porque vou envelhecendo cada vez mais com elas. Os especialistas dizem que essa divisão de décadas é pura convenção, começou com os historiadores, passou para os economistas com suas “séries históricas” e chegou à cultura popular. E aí todo mundo passa a querer entender o que passou nomeando décadas. Houve a década de 60, que hoje é vista como “hippie” e “revolucionário”. A de 70, a década da dissolução do eu e do desbunde. Houve a de 90, hoje vista como... Como o que mesmo? E houve a ainda menos característica década de 2000, que ficou apagada porque as pessoas demoraram meia década (ou um lustro) até se dar conta que ela era a de 2000. Por isso, virou uma década quase inominada, para usar um termo vistoso. Estamos adiantados no tempo, em plena década de 10 - e confesso que me cansei dessa história de décadas.
Nada me diz ou garante que as pessoas mergulham de uma década a outra, como se trocassem de piscina ou de guarda-roupa. Infelizmente, as coisas não se passam de forma tão bonitinha assim. A piscina é a mesma e a água, apesar de tratada, vai ficando mais suja. Os tecidos se renovam, mas o ser que os recheia não deixa de ser o mesmo: precário, mortal e frágil. Uma década sai da outra, como as bonecas mariochkas russas. Mas ao contrário: a mariochka maior é a última a sair, e ela tem a pretensão de conter e compreender as demais.
Tudo isso me parece inútil e muitas vezes cretino. Agora, a década de 80 está vivendo uma revivescência - ou “revival”, como preferirem. Hoje ela é vista como “brega”: suas roupas, seus modismos de cabelo, suas falas, seus sonhos. Ela é encarada como um objeto a um só tempo de culto e repúdio. Não concordo com nada disso. E desejo demonstrar aqui que a década de 80 não existiu senão no cérebro das pessoas. Pelo menos, ela não existe mais, exceto como retorno fantasioso. No cérebro dos economistas, ela não passou da famosa “década perdida”. O que ficou dela? Nada, quase.
Dou um exemplo: a reencenação da telenovela Ti-ti-ti, sucesso de Cassiano Gabus Mendes de 1985-1986. A nova versão, dirigida por Jorge Fernando com adaptação de Maria Adelaide Amaral, traz à margem esse fenômeno curioso da releitura de uma década por outra. Trata-se de um processo imaginário baseado em dados superficiais, por meio dos quais o presente tenta compreender e definir um certo recorte do ontem. O resultado do processo de anamnese - como dizem os médicos quando querem se referia à “história clínica do paciente” - só pode render imprecisão, quando não caricatura. O remake de Ti-ti-ti quer ser uma abordagem atualizada e cômica de uma história dos anos 80. Não que a nova novela pretenda realizar uma montagem com costumes “de época”, com direito a trejeitos, figurinos, objetos e design de um tempo perdido. Não. A operação é mais interessante na nova Ti-ti-ti, porque ela é ambientada nos dias de hoje. A referência aos anos 80 surge de forma subreptícia, tanto porque a trama vem de lá, como boa parte do elenco é formada por gente daqueles tempos. Isso torna os anos 80, se é que eles existem, uma presença mais forte. A competição entre dois costureiros, Victor Valentim (anteriormente Luiz Gustavo, hoje Murilo Benicio) e Jacques Leclair (Reginalado Faria antes, Alexandre Borges agora) ganhou importância, já que a moda e o entretenimento hoje ocupam espaço central na vida das pessoas. E quem era jovem nos anos 80 hoje retorna na posição de madurão.
É o caso de Malu Mader, que fez uma jovenzinha em 1985 e agora retorna na pele da mãe da personagem. E talvez não seja impreciso dizer que os anos 80 no Brasil só nos deram Malu Mader. Porque tudo, se é que tudo existe, parece ter girado em torno da atriz: os Titãs, Cazuza, os filmes ruinzinhos e o rock, o teatro e a televisão daqueles anos, também chamados de “redemocratização do Brasil”, anos que começaram com a hiperinflação do governo militar e terminaram com a eleição de Fernando Collor de Mello. Jorge Fernando parece ter sido sensível a isso e convidou Malu porque ela é a epítome da década perdida. Continua bela, mas algo passou e é irreversível. Todos nós que viemos daquela década sentimos isso. Isso nos faz mais patéticos, em busca de um tempo perdido... Que de fato nunca existiu. Tudo por causa da maldita mania de “decadizar”.
É engraçado como as ideias se processam no tempo-espaço. De uns dez anos para cá os anos 80 ganharam a forma de uma breguice total. Não consigo ver as coisas desse jeito. Quando me lembro de então só vejo o tempo passando, correndo, aumentando de velocidade. Vejo as pessoas que passaram por minha vida, coleciono perdas e mortes, coleciono lembranças mais ou menos coerentes. Não, não me esqueci de nada. Comecei a década estudante e para terminá-la jornalista famigerado por minhas críticas acerbas contra o rock brasileiro e alguns músicos eruditos. Foi um processo de desaprendizado, de me despir de conceitos e assumir ideias adquiridas. Na referida década, nós, jornalistas de cultura, desaprendemos a amar a música popular brasileira e a proteger seus artistas. Isso porque eles já não estavam sob a ameaça do exército, não corriam mais riscos, e assim desaprendemos a prestigiá-los. Desaprendemos a amar o Brasil, que nos parecia um País atrasado, infeliz e injusto. Desaprendemos a olhar o mundo com um sorriso. Naquela década, perdemos a inocência. Perdemos até a Malu Mader para o Tony Bellotto.
Falo em nome de quem chega ou já chegou aos 50 anos. Tínhamos vinte e vinte e poucos nos anos 80. Não há alternativa melhor para mim que esta, a de ter 50 anos. Há duas décadas, os pesquisadores e historiadores culturais correm atrás de mim para dar depoimento sobre aqueles tempos, que eles querem explicar e interpretar. Mas eu fujo de todos porque não consigo ter inteligência para ver grande coisa. Nem mesmo para ver o quanto éramos bregas. A gente nem se achava o máximo. Todo mundo corria atrás do prejuízo a que o País estava atirado. Consumíamos discos e livros importados como tesouros vindos de longe. Não havia redes sociais, nem internet, nem quase importados. Mas havia telefone, havia televisão, havia Ti-ti-ti, havia o mundo como uma incógnita, a vida como um enigma a decifrar. A música, o cinema, o teatro e a literatura já abriam portas. Ninguém tem culpa de nascer antes. E nem responsabilidade sobre o azar de ter experimentado tempos amargos como aqueles. Porque nada aconteceu, nada mesmo. Consigo ver toda essa tristeza no olhar de Malu Mader.

Luís Antônio Giron é jornalista. Transcrito, sem adaptações, do site da revista ÉPOCA (São Paulo-SP), de 20/07/10; Giron é editor da seção Mente Aberta, de ÉPOCA, escrevendo sobre os principais fatos do universo da literatura, do cinema e da TV. Postado em 26/07/10

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